Certa vez em um jardim de margaridas
não muito longe da Esquina da Amizade foram plantadas duas sementes diferentes
das demais plantas dali. Não demorou para que brotassem, pode-se dizer
inclusive que se desenvolveram simultaneamente e por isso, talvez, é que
tivessem se tornado tão amigas.
Aquela que primeiro, por uma questão
de três minutos, colocou para fora da terra seu broto foi Flor; caule forte,
poucas pétalas vermelhas formando um desenho que mais lembrava uma ponta de
lança, muita gentileza e bom humor. Em seguida veio Digna, caule fino e longo
ornado por alguns pequeninos, mas afiados espinhos, um amontoado de pétalas
lilases sobrepostas que fariam inveja a qualquer rosa, determinada, inteligente
e igualmente bem humorada.
As margaridas as adoravam, aliás,
qualquer ser vivente as adorariam. Sua amizade era constante e inabalável.
Numa noite o Jardineiro abriu espaço
no jardim e plantou algo que fez todas as flores gritarem de medo ao acordar:
um cacto.
- Um cacto em meio às margaridas!
- Onde já se viu uma coisa destas?
- O Jardineiro terá enlouquecido?
- Será que não tinha mais potes para
plantar essa coisa?
A confusão foi geral até que a dupla
Digna e Flor acalmaram os ânimos:
- Por que essa confusão toda?
Perguntou Flor.
- É apenas um cacto - continuou
Digna – É preciso saber respeitar as diferenças.
- Isso mesmo. Lembram que também não
gostaram da gente no começo por que não éramos margaridas como vocês?
- E lembram como nossa presença
ajudou a polinizar outros jardins? Atraímos mais polinizadores e ficamos todas
amigas.
- Além do mais - disse Flor - o
Jardineiro não iria colocar no meio de nós algo ou alguém que pudesse nos fazer
mal sem que pudéssemos nos defender. Sem contar que estão apontando e falando
coisas sem nem mesmo ter falado com ele ainda.
As margaridas viram que havia
sensatez e bondade nas palavras das duas e precisavam dar ao cacto uma chance
antes de deixá-lo mais isolado do que já estava. Decidiram que as duas quem
falariam com ele por que foram elas que entraram como advogadas na história. E
elas foram.
Descobriram desta forma que o cacto
se chamava Escudo e que foi colocado ali por que as margaridas estavam muito
preconceituosas e mesquinhas nas últimas estações, e que inclusive, estava ali
também para aprender a se adaptar e conviver, uma vez que está habituado ao
clima isolado, seco e árido, diferente daquele jardim. Seria uma experiência
enriquecedora para todos.
As margaridas entenderam e ficaram
felizes por terem a chance de se corrigirem e
agradeceram as duas por conta dessa postura e de sua coragem. A amizade
delas era de fato constante e inabalável.
Era o que se pensava...
Numa manhã sem precedentes o
Jardineiro apareceu com outra planta para aquele jardim. Ficaram todas
curiosas, aflitas e até temerosas, mas já haviam aprendido a receber as
diferenças com respeito. Mas a pergunta que não se calava era: o que o
Jardineiro teria inventado desta vez?
Assim que ele se afastou, todos os
olhares se voltaram para o novo integrante daquele jardim: um cravo amarelo.
Desta vez não precisou que ninguém
fizesse a mediação, pois ele mesmo chegou e se apresentou para todo mundo como
Miletrê. Que em segredo era uma referência as mil e três outras flores que
tinham experimentado a maciez de suas folhas. Todas as margaridas, também em
segredo, queriam provar essa maciez.
Foi aí que os problemas começaram
por que as flores Digna e Flor que eram inseparáveis passaram a pouco se falar.
Seja quais forem os reais motivos, o que havia entre elas deu espaço a um vazio
dolorido. E desde este dia elas começaram a se transformar.
Digna começou a crescer de forma tão
rápida que em poucos dias o Jardineiro teve de estender a cerca do jardim. Já
Flor começou a tomar a forma de uma ninfa: uma mistura de menina e flor,
entretanto suas raízes estavam emaranhadas com as raízes de sua outrora amiga.
Pouco tempo se passou até que Flor
conseguisse confeccionar uma foice com suas antigas pétalas em forma de lança.
O clima no jardim era outro, pareciam todos cactos isolados como Escudo. Havia
tristeza, ressentimento e raiva no ar. Ninguém sabia ao certo a origem concreta
disto, mas todos sabiam que era algo real, uma dor palpável. Faltava água
naqueles corações.
Um dia Flor acordou decidida a mudar
a situação, resoluta de que tinha de cortar laços para que todos pudessem ser
felizes de novo, mesmo que ela própria demorasse mais um bom tempo para ficar
igualmente bem. Pegou a foice começou, com delicados movimentos, a ceifar suas
raízes e plantar algumas sementes de si mesma no caule da então árvore jovem
que Digna havia se tornado, e no chão macio lá embaixo.
- O que está fazendo? - perguntou a
árvore.
- Estou plantando uma saída de você!
- foi a resposta.
- Mas por que?
- Estou cansada de esperar que me
note, e me regue com a frequência que preciso
- Mas eu não o faço? - perguntou
Digna com aparente incerteza.
- Acha que faz?
- Acho que não... - assumiu.
- Eu sei que não, eu sinto isso -
disse Flor com os olhos marejados - E
você acha que me deixaria ir?
- Acho que não - foi a resposta mais
sincera até o momento.
- E é justamente por isso que planto
uma saída... Assim terei tempo de querer sair também.
- É o que quer fazer?
- É o que farei. Não estamos olhando
na mesma direção. E no momento não sei responder se estou pequena demais para
você ou se você é que está grande demais para mim... Não estamos olhando na
mesma direção.
Nem findou a estação e a “saída” de
Flor já estava crescida e forte. Sem a ajuda de Digna, esse processo levaria
mais tempo e essa era a resposta para qualquer pergunta que não tenha sido
feita.
Flor se despediu do jardim e se
lançou para longe dali a procura cactos ou girassóis para dividir seus sorrisos
e sua companhia. Arremessou-se para longe de seu lugar em busca de novos ares e
tomou novamente a forma de flor com pétalas de lança, voando certeira na
direção de corações que entendam e repeitem as diferentes formas de ser e de
amar. Como uma perfeita flor-de-lis.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
"O essencial é invisível aos olhos"