Sua
cabeça fervilhava e ela só conseguia se lembrar de um grande círculo
vermelho que se aproximava mais e mais. Não era uma luz. Ela sabia bem que não
estava sonhando e não havia viajado aquela noite. O que ela definitivamente não
sabia é como foi parar debaixo de um viaduto, com m roupas que não eram suas,
nem mesmo as de baixo.
Não demorou para reconhecer que
estava em sua própria cidade, mas na zona leste, bem longe de casa. Revistou os
bolsos e apesar de estar com outra roupa, encontrou sua carteira, completa, com
documentos e dinheiro, inclusive as moedas.
Começou a recogitar a possibilidade
de um porre, mas um menino sem camisa, de uns doze anos parou em sua frente e
ficou lhe olhando curioso e sem desfarçatez. Olhou de cima abaixo.
- O que foi moleque? Nunca viu não?
- Na verdade eu já vi sim, dona.
Fiquei te vendo a noite inteira pra ninguém mexer com a senhora.
- E por quê faria isso? quem te
pagou?
- Eu não sei não, dona. Eu tava
dormindo no outro vão do viaduto quando um carro parou em frente e jogou uma
coisa na gente. Todo mundo pensou que fosse um coquetel molotov ou outra coisa
de fazer mal a morador de rua, mas era um bilhete pedindo pra cuidar da
senhora. Tinha dinheiro junto. A galera fugiu com o dinheiro pensando que era
armadilha da polícia ou qualquer outra coisa para sacanear com morador de rua,
mas eu fiquei.
- E por que você ficou?
- Fiquei sozinho e sem o dinheiro,
pensei em fugir também, tenho que confessar, mas quando te vi de perto com essa
pele negra e essa cara de pobre chapada, pensei que não era brincadeira. vai
que precisava mesmo de ajuda.
- Não viram ninguém? Que carro era?
Alguém anotou a placa?
- A dona acha que tá num filme da
televisão, é? Na vida real ninguém anota a placa quando vê um troço desse! Quem
é pobre corre pra num tomá tiro de graça e quem tem grana ignora já que nem
liga para morador de rua.
- Mas você ficou...
- É, eu sei. Não sou muito esperto
não, dona. Mas minha mãe, quando era viva, disse pra mim ser direito... E ajudar
uma mulher sozinha de madrugada no meio de um bando de tarado e drogado me
pareceu a coisa direita de fazer.
- Obrigado, por isso.
- De nada.
- Cadê o bilhete que dizia pra
cuidar de mim?
- Os caras levaram junto com o
dinheiro...
- Qual seu nome, menino?
- Vanicleiton, mas todo mundo aqui
me chama de Vermelho - por causa dos meus olhos.
E só então ela reparou assusatada
que o garoto não tinha olhos pretos como esperava ou castanhos como poderia ser
comum a alguém com aquele tom de pele moreno, mas vermelho. Um vermelho vivo
que não parecia doença, mas pintura. Lindos e enigmáticos círculos vermelhos.
Ela se esforçou para desviar o olhar
e não constranger o menino com o estranhamento, mas ele reagiu ligeiro:
- Não se preocupa não, dona. Se
assustar faz parte. Já me chamaram de um monte de coisa ruim por causa do meu
olho ser assim, vermelho. Não é droga, não. Eu juro!
- Eu sei que não. Esse tipo de
vermelhidão eu conheço...
- Já me chamaram de filho do cão,
filho da puta e filho do caos, que eu nem sei quem é. Só sei que minha mãe não
aguentou e fugiu comigo pra rua, onde ninguém regula ninguém assim. Feio,
bonito, gordo ou magro, na rua é tudo igual: fudido!
Ela riu pela forma sincera, embora
cruel que Vermelho via sua própria condição.
- Mas qual o seu nome, dona? Quem é
você?
- Meu nome é Cirkel. Também tive
problemas na infância por causa de gente preconceituosa...
- O meu nome é engraçado, mas o
seu... É estranho pra burro!
- Ótima maneira de retribuir uma
tentativa de gentileza...
- Não precisa ser gentil comigo não,
dona... Quer dizer, Cirkel. Falei certo? Minha mãe disse que a gente sempre
deve chamar as pessoas como elas se apresentam.
- Sim, falou certo sim, Vermelho –
ela respondeu mexendo na carteira em busca de uns trocados para lhe dar pela
vigília e partir – Cirkel significa “círculo” em holandês...
- Pensei que fosse “circo”. E por
acaso tem gente negra na Holanda?
- Tem gente negra no mundo todo! E
não é circo, é círculo, entendeu? Círculo!
Então ela percebeu...
Não foi um encontro aletório.
Sua última memória da noite anterior
remete justamente ao encontro esquisito de hoje: círculo vermelho.
Ela entregou uma nota ao menino,
pensou um pouco e propõs:
- Quer outra dessas para me
acompanhar até o metrô mais próximo?
- Eu até quero, dona Cirkel – respondeu
o garoto desconfiado - mas o metrô tá bem longe daqui...
- Tudo bem – respondeu a moça, já
sabendo da distância - Eu preciso mesmo andar e conversar.
E assim partiram, ladeados, um passo
atrás do outro. Ambos querendo entender este encontro e torcendo para que ele
trouxesse mais respostas do que dúvidas.